quarta-feira, 28 de novembro de 2012

E-mail racional


Para a palavra racional encontrei alguns significados, por exemplo, alguém capaz de usar a razão, de raciocinar. O homem é animal racional. Também localizei que se refere a alguém capaz de se basear na razão, no raciocínio lógico; e não na emoção. A questão matemática, para este caso, ficou de lado. Ela não explica o envolvimento que o caso gerou.
Tenho desenvolvido pessoas para comunicação e, de fato, é preciso isentar-se da emoção para escrever e-mails. Esse tipo de comunicação tem impactado a vida de muitos profissionais e de muitas empresas. Trata-se de documento que permanece arquivado no servidor por dois anos, no mínimo. Por esse motivo, deve ser pensado, antes de acionar o dedo indicador com a velocidade com que tenho visto acontecer.
O pior cenário é aquele, em que o cidadão se arrepende de ter enviado uma mensagem e, imediatamente, envia outra para desconsiderar a anterior. Se havia alguma chance de não ser lida; agora, vai ser prioridade para quem recebeu. Dessa forma, torna-se inútil a tentativa de anular o texto àqueles desesperados por terem enviado comunicação com erro ou à pessoa errada.
São quatro situações impossíveis de retomar: a flecha lançada, a palavra dita, a oportunidade perdida e o enviar/receber do e-mail. É preciso enfrentar o fato de que o e-mail enviado pode adquirir projeção geométrica e geográfica de tal forma que não se tem mais controle sobre ele. Diante desse cenário, pensar muito antes de escrever é aconselhável.
Hoje, é muito mais comum a pessoa escrever um e-mail, pela facilidade com que essa ferramenta atinge a todos, do que fazer uma interação telefônica, para tratar assunto mais cotidianos, sem necessidade de registro. E assim, tenho visto emissão de documentos, com muitos erros e com consequências nefastas para o indivíduo e para o coletivo.
Qualquer dia, eu vou me dedicar a enumerar muitos fatos ligados ao tema. Mas, houve uma narrativa que chamou minha atenção, em um último curso sobre Comunicação oral e escrita, junto a profissionais de empresa de grande porte.
Os participantes pertenciam ao setor administrativo. Em meio ao grupo, havia Advogados, Administradores, Assistentes, Psicólogos, profissionais da logística, enfim, tratava-se de equipe seleta. Assim que concluímos a primeira parte do curso, saímos para almoçar. Nesses momentos mais informais, as pessoas aproveitam para comentar algo diferente.
Pude sentar-me ao lado de dois rapazes simpáticos. Percebia-se que eles tinham verdadeira sede do saber e que estavam incomodados diante das reflexões causadas na primeira parte do curso. Um deles, mais falante e bastante interessado contou-me que havia recebido um e-mail em que o líder do setor dele solicitava para escreverem e-mails mais racionais.
Ao receber aquela mensagem, de calmo tornou-se inquieto. Passou a pensar nos significados que o líder queria imprimir àquela mensagem. O primeiro pensamento, tomado pela emoção, foi que ser racional era diferente de irracional. Logo, se ele era homem, portanto não havia o que questionar. Mas, teria o líder insinuado que ele era irracional? Bicho?
Quando a inquietação toma a vida do homem, surge um “X”, em sua mente,             eu permanece até que ele o decifre ou o devore. Assim foi naquele dia. O que pensar? O que o líder pensava dele? Havia cometido algum engano? Por que o texto não indicava algo concreto?
As dúvidas dormiram com ele; mas, no dia seguinte, precisa esclarecer. Telefonou para o líder e solicitou uma reunião. Imprimiu o texto e levou-o para conversarem sobre o assunto.
O líder, sem sequer imaginar o que o texto havia causado, perguntou a ele:
- Como está? Tudo bem? O que houve?
- Bem, comigo, está tudo bem? E com o senhor? – perguntou o rapaz.
- Estou bem, um pouco cansado, com alguns problemas familiares – comentou o líder, com a tranquilidade de quem se sentia bem, junto ao colega de trabalho.
- Deu para perceber – retrucou o rapaz.
- Como assim? Está visível? – Perguntou o líder.
- Não, Senhor, está legível. – informou o colega.
- Pode me explicar? Legível? Como assim?
- É que o Senhor me chamou de bicho, ontem, no e-mail. - informou
- Eu não escrevi isso. Deixe-me ver na minha caixa de saída de e-mails de ontem. – falou o líder.
- Não precisa, está aqui, impresso, em minhas mãos. O Senhor pediu para ser mais racional, em meus e-mails. Se sou homem, logo sou racional. Não sou bicho.
- Nossa! Foi assim que você entendeu minha mensagem? Não pensava que pudesse ser assim.
- Então, sei que o Senhor tem problemas. Eu também tenho. Mas acho bom pensar antes de escrever. Eu imprimi o texto e vou guardar. Eu respeito o Senhor, e quero respeito para mim também.
É a situação não ficou resolvida, mesmo com aquele momento de reunião entre os dois. O assunto continuava a permear a mente daquele profissional que participou do meu curso. Há momentos na vida do homem que são muito marcantes e que permanecem, acrescidos de outras situações, em que não houve boa comunicação. Diga-se, de passagem, que a falha na comunicação quebra relacionamentos.
Comunicar é, antes de tudo, um ato de solidariedade. Pense bem. A palavra só pertence a você até o momento da emissão. A partir do recebimento do texto, o interlocutor vai atribuir significados a ele. É muito opotuno poder evitar a famosa frase: “Não foi isso que eu quis dizer.”.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A amiga desastrada




Conhecer as pessoas é o maior ganho da existência. Algumas são criativas, outras inteligentes, outras inspiradoras. A essa, a quem vou dedicar a narrativa, devo muito aprendizado. Foi uma grande mestra para mim. Costumo dizer que tudo o que comunica modifica. O convívio com essa pessoa a quem vou chamar, carinhosamente, de Marluce, proporcionou-me um grande bem-estar, além das alegrias que pudemos compartilhar. Se não declaro o nome verdadeiro, é apenas para proteger nossa amizade e nossa identidade.
“...Vou proteger seu nome, por amor, em um codinome beija-flor...”. Embora a relação não seja igual, toda vez que ouço essa música, identifico o respeito que se deve atribuir às pessoas de nosso relacionamento. Em uma pesquisa sobre o que é mais importante na relação entre as pessoas, o amor não foi o primeiro. Destacou-se, lá, o respeito. Por esse motivo, se aguço a curiosidade, premio os leitores com o prazer dessa história tão engraçada, mescla da realidade com a ficção.
Nosso trabalho de consultoras permitia colecionar experiência, vida, conhecimento e muitas aventuras juntas. Ela era engraçada, loira, estatura média, corpo escultural, sotaque carioca, de um olhar brilhante e expressão de menina sapeca. Em tudo criava e aprontava.
As histórias dela eram entre o engraçado e o tocante. A verdade é que ouvi-la, estar com ela era algo mágico. Que felicidade poder encontrar pessoas assi. Algumas vezes, o humor variava e ela se tornava uma pessoa nervosa, irritada. Acho que foi nessa distmia que nossas vidas precisaram encontrar caminhos diferentes. Houve uma estrada reta. Em um dado momento, deparamos-nos com uma bifurcação e cada uma seguiu o próprio caminho.
Em um dos sábados, em que atendíamos um cliente, para um curso, tínhamos também de ir ao casamento de uma grande amiga. Seguramente, estaríamos lá, para prestigiar o grande evento. A vida corrida não nos permite muito ensaio. Dessa forma, roupas no carro, logo pela manhã. O combinado era terminarmos o curso e nos arrumarmos no espaço do hotel. Depois, passaríamos em um shopping para comprar o presente. Pensamos em um belo cristal para decoração da mesa da sala de jantar. Tudo combinado. Passei na casa da minha amiga, logo cedo, para apanhá-la.
Ela veio ao meu encontro, com várias sacolas. Afinal, a indecisão, no momento de escolher a roupa, fez com que ela trouxesse logo o guarda-roupa. Uma mala era de maquiagem e acessórios; outra para os sapatos e outra para as roupas. Ela vinha com toda aquela bagagem enroscada e aos puxões. Sai do carro para ajudar e comentei:
- Nossa! Hoje vai ser o destaque, mais bonita do que a noiva.
Ríamos. Nossa amizade permitia essas cumplicidades. As falas eram subentendidas e tudo era entendido. O contexto era claro para nós.
- Hoje, vou trabalhar com essa sapatilha. Cansa estar o dia todo, em pé. E você sabe, né, sou desastrada, caio à toa.
Esqueci-me de dizer que ela não se equilibrava muito bem no salto. Dessa forma, precisava estar com sapatos baixos. Um só degrau seria suficiente para derrubá-la. Os saltos altos tinham ficado na mala, para, depois, irmos ao casamento. A ocasião requeria.
O trabalho foi intenso. No final do expediente, rumamos em direção ao shopping. Ir a esses lugares, aos sábados, em São Paulo, não é tarefa fácil. Para começar, a dificuldade de localizar uma vaga, no estacionamento. Não queríamos gastar dinheiro com manobrista. Procuramos um lugar e, logo, avistamos.
Sou ágil ao volante e enbiquei o carro, para estacionar de ré. Distraídas, em nossas conversas, não percebi que havia outro cidadão para ocupar o mesmo espaço. Lei da Física: dois corpos não ocupam o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Consegui estacionar primeiro, ao que o cidadão soltou um sonoro “Filha da p.....”, para nós.
Minha amiga, excelente professora em Língua Portuguesa, ficou irritada e gritou para ele.
- Ô, cidadão, você não conhece a minha mãe. Xingue em Português correto. É “Filho de p...”.
Nesses momentos, a minha amiga dava aulas de português. A diferença entre utilizar um artigo definido ou não é designar a pessoa e conhecê-la. Nesse caso “de+a”, significava mãe conhecida. O indivíduo olhou com expressão maluca e desistiu de nós. Foi em busca de outra vaga.
Esse era apenas o começo de um momento ainda mais intrigante. Ao sair do carro, Marluce decidiu que já usaria o salto alto. Alertei-a sobre a dificuldade, ao vencer escadas, rampas, enfim. De nada adiantou, a vaidade falou mais alto. Abri o porta-malas e ela calçou o sapato alto.
Seguimos para a loja. Tínhamos em mente o que comprar, e a missão tournou-se mais fácil. Escolhemos o cristal, pagamas e saímos da loja, em busca de um café, para, depois, seguirmos para o casamento.
Sugeri que eu carregasse o pacote, com o cristal; mas ela não me deixou. Fez questão de carregá-lo. E assim seguimos, passos apressados, em direção à rampa de acesso aos estacionamentos que ficavam no andar de baixo. Ela, apressadinha, caminhava e, lógico, exibia um rebolado discreto; mas um pouco chamativo.
Foi em uma dessas trocas de passos que ela torceu o pé e se desequilibrou. Tudo aconteceu em fração de segundos. Mal pude segurar o cristal; mas não consegui retê-la pelo braço. Assisti paralisada à tentativa dela de se segurar em algo, ao descer aquela rampa em desalinho de passadas largas, com as mãos ao espaço, para tentar segurar em algo.
Em dado momento, encontrou um homem que caminhava à frente dela. Ele trajava calça de moleton e estava bem à vontade, naquela tarde de sábado. O que ela pôde segurar foi a cintura da calça dele. A peça de roupas não tinha muita firmeza e, com o solavanco que recebeu, no momento em que minha amiga se apoiou nela, desceu e deixou à mostra, a parte traseira do rapaz que, por conta do descuido, não vestia cuecas.
Um pouco distante eu via o rapaz e ela baixarem juntos. Ele segurava a parte da frente das claças, para proteger-se e dizia “moça, moça, moça...”. Ela afundava as unhas no traseiro dele, para tentar equilibrar-se. Ao fim, estavam agachados ao chão e o shopping, parado, para assistir àquele espetáculo sensacional.
Quando consegui ter domínio do que havia ocorrido, segui em direção a ela. Minha amiga chorava, envergonhada com a situação. O homem sumiu de nossas vistas. Pensei em socorrê-la, oferecer água, acalmá-la. Convidei-a para o café.
Abracei-a e fomos. Ao aproximar-nos do quiosque do café, para nossa surpresa, deparamos-nos com o rapaz das calças. Antes mesmo de a minha amiga se desculpar, ele segurou fortemente o cós e saiu de perto de nós. Nunca mais o vimos.




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Porteiro do Edifício Higienópolis


Lavrador, nascido em Minas Gerais, Pouso Alegre, queria ter alguma oportunidade para a família. Via amigos locais saírem da terra e rumarem para São Paulo. Quando começou a prestar atenção ao fato, julgava esses imigrantes tolos. Afinal, viviam em pobreza; mas tinham  casa, simples, já desgastada pelo tempo, com falhas no reboco, herdada dos pais. Conseguiam frequentar festas locais, eram religiosos, tinham vida social. Todos esses pensamentos fizeram com que ficasse por ali, por mais tempo do que o necessário.
Concluiu apenas o Ensino Fundamental. Formou-se na oitava série e sentia-se muito feliz por isso. Afinal, continuar os estudos era inútil. Naquele local, havia emprego somente na roça. Era cuidar da lavoura, do gado. Nessa toada de vida, casou-se, teve dois filhos, um menino e uma menina.
A topografia de Minas Gerais costuma não ser muito hospitaleira àqueles que vivem da lavoura. Arar a terra é um desafio, por aqueles campos montanhosos e íngremes. Era preciso vencer a batalha de preparar a terra, para, depois, plantar. O filho crescia aventureiro e gostava dos tratores. Todos estimulavam as crianças, desde pequenas, para tomarem gosto por aquelas atividades. Depois, estudar pouco, comprar um terreno, construir uma casa, comprar alguns móveis. Será que a vida é só isso? Nesse questionamento, Antonio Cassemiro permanecia, por alguns instantes, enquanto descansava o rosto nas duas mãos apoiadas sobre o cabo da enxada. Sentia o suor escorrer pelo rosto, as mãos endurecidas pela calosidade.
Naquela semana, tinham muito a fazer. Era arar terra, preparar o solo. Eles precisavam plantar feijão. O terreno devia estar revirado, para afofar a terra e, dessa forma, receber a semente. Aquele grão tão precioso, nascido em vagens, alimentaria a mesa de muitos brasileiros. O compadre Joaquim, dono de um trator, cuidava de fazer esse serviço, para adiantar a plantação. Precisavam ganhar tempo. A chuva logo viria e molharia aquele espaço, para tornar a produção mais vantajosa.
Na lida, entre pensamentos e ronco de motor, permaneciam horas, desde a madrugada, bem antes de o sol nascer. Levavam a marmita. Às 09h00, almoçavam. Em torno das 15h00, voltavam para casa, hora de cuidar dos animais, da horta, recolher os ovos e o gado, alimentar os porcos. Às 07h00 jantavam. A vida transcorria na rotina. Demais, às sextas-feiras, encontravam-se na venda mais próxima. Um sanfoneiro e um violeiro tocavam uma modinha. Os fazendeiros levavam algo para comer. Essa era a festa deles.
A pausa para descanso era respeitada por religiosidade. O Padre puxava a orelha dos fieis que não compareciam à missa dominical. Só por essa razão, não aravam a terra aos domingos. Aproveitavam esse tempo para vestir a melhor roupa, calçar sapatos mais justos e ir ao comércio local para comprar alguns apetrechos necessários à fazenda.
Na segunda-feira, muito cedo, retomavam as atividades. Compadre Joaquim pensava em ampliar a plantação. Ele havia escutado sobre o clima propício para aquela produção, e algumas  sacas a mais ajudariam para a reforma do curral, tão necessário à propriedade. Para ganhar musculatura, permitiu ao filho que contava dezesseis anos o trabalho no trator. O menino ficou entusiasmado, sentia-se – verdadeiramente – homem, na posse daquela máquina. O Compadre via com gosto o quanto o rapaz era ousado, rápido, destemido. O menino enfrentava os morros e as pedras sem temor. A juventude traz dessas onipotências. Ele sentia no olhar do pai e na aprovação dos amigos da lida que estava bem no conceito de todos. Isso conferia a ele mais ânimo para trabalhar, sem descanso.
Foi em uma dessas viradas radicais, necessárias ao trator, que ele resvalou em uma pedra maior e tombou a máquina. Todos ouviram assustados o barulho que parecia mais uma explosão. Apressaram-se até o local em que ocorreu o acidente e encontraram, perplexos, o filho do compadre esmagado, entre o trator tombado e a pedra enorme com que colidira. Os amigos se apressaram em chamar o compadre que desmaiou ao ver a cena. Nem todas as sacas de feijão a mais trariam a vida do filho dele de volta. Não adiantava correr, tirá-lo dali às pressas. Tudo estava consumado. A semana tornou-se feriado, nada mais se fez, naqueles dias que se seguiram. Solidários, todos acompanharam a triste sina do amigo e da esposa inconsoláveis. Era o filho único. Em uma semana, compadre e comadre envelheceram mais de vinte anos. A vida havia perdido o viço.
Quando se demora em decidir um rumo, a vida pode apresentar cenas que provocam reflexões mais intensas. Foi por causa dessa perda sofrida pelo compadre que Antonio Cassemiro decidiu, de vez, sair daquele local. Queria outro destino para os filhos. Decidiu manter a casa da cidade, vendeu o pequeno sítio e conseguiu comprar uma pequena casa, em bairro simples e perigoso de São Paulo.
Ao mudar-se para a Capital, conseguiu emprego de porteiro, em um edifício de Higienópolis. Se trator esmagava filhos e deixava pais solitários, o transporte público de São Paulo não fazia por menos. Ele acordava às 04h00 para conseguir chegar ao trabalho por volta das 06h30. Para retornar a casa dele, lá se iam quase três horas a mais. Nesse ritmo de revezamento, com sete dias de trabalho por um de descanso, quase nunca estava em casa aos domingos. A missa já não era mais a rotina da família completa. A esposa dedicada permanecia na luta para conduzir os filhos no caminho do bem. São Paulo era grande e todas as dificuldades também apresentavam a mesma proporção. O bairro de Higienópolis era rico e contava com segurança, ruas asfaltadas, boas escolas, povo bonito, bem vestido, boas lojas. Em cenário totalmente contrário, estava o bairro do Penteado, pobre, com muitas favelas, jovens usuários de drogas por todos os lados, muitas brigas de rua nas escolas, professores amedrontados.
O homem que conhece algo melhor consegue traçar comparações. Durante a viagem para casa e ao verificar a discrepância de cenário, era fácil  para Antonio decidir o que queria para os filhos. Começou a perguntar valores de propriedades por ali. Não precisa ser algo grande, nem caro. Poderia ser apenas  cômodo com banheiro. Qualquer lugar, em Higienópolis, seria muito melhor para a família. Foi com tristeza que pode observar a impossibilidade de vender a casinha comprada na periferia e, com o mesmo valor, adquirir um cômodo no bairro nobre. Definitivamente, isso não seria possível. Ficou  entristecido por dois dias. Acontece que a tristeza vai embora, no momento em que o homem toma decisões. Sair da periferia, com a família era decidido. Conversou com muitos colegas e descobriu que poderia se candidatar à vaga de zelador do prédio vizinho. O Síndico o conhecia e gostava da disciplina que ele mantinha na portaria. Tomou coragem, mal sabia escrever, mas era homem disposto. Se preciso, conserto, troco, remendo, faço o que o senhor quiser. Ficou um pouco preocupado quando o síndico perguntou se ele tinha filhos. Dois; mas são bons meninos, obedientes, e a mulher cuida deles sim, senhor.
Aquela fala sincera provocou credulidade no síndico. O emprego é seu Antonio, espero que saiba das obrigações do zelador: aqui é preciso trabalhar todos dos dias, você não pode se ausentar aos feriados e finais de semana; os clientes são os moradores, eles precisam estar felizes com seu atendimento, combinado?
Antonio nem pensou duas vezes. A possibilidade de trazer os filhos para um lugar melhor e de passar mais tempo com eles era tudo o que queria. Colocaria olhos firmes no menino levado que tinha, mantê-los-ia no bem. A esposa era compreensiva, quando quisesse viajar para ver os familiares, poderia ir; ele ficaria para cuidar do prédio. Quando um homem se torna pai, a prioridade dele é o bem-estar dos filhos. Isso Antonio fazia bem. Ele e a esposa em tudo concordavam e, assim fizeram: eles se mudaram para aquele apartamento. Os benefícios eram importantes. Não pagava aluguel, água, luz. Dessa forma, conseguia fazer uma poupança e melhorar a propriedade de Pouso Alegre.
Antonio trabalhava duro, todos os dias, sem horários definido. O filho o acompanhava em muitas tarefas. Era um menino vivo, esperto, decidido. Via o pai com o sorriso estampado e imitava-o. Se pai é tão querido por atender tão bem às pessoas, vou fazer igual, quero ser igual ao meu pai, quando crescer. A vida imita a arte e os filhos imitam os pais. Assim cresceu e tornou-se um belo homem, sorridente, a serviço do próximo, sempre com soluções.
Com o tempo, estudou em escolas públicas, mas bem localizadas; iniciou o trabalho em uma companhia de seguros e, por mostrar-se sempre bem disposto, foi reconhecido e promovido. Edificou uma família muito bonita. A esposa, sempre ao lado dele, contribuiu para que o enfoque principal não se perdesse de vista. Líder sabe, desde sempre, o que quer e faz por merecer.
Conheci esse homem em uma das oportunidades de trabalho que a vida me oferece. Tratava-se do desenvolvimento da comunicação para líderes. Ele é Diretor Comercial de uma empresa mundial e é líder para muitos profissionais, dedicado a motivar, a acompanhar. Seguramente, destacou-se na jornada que se propôs a percorrer. Pessoa muito competitiva, entusiasmada, sorridente. Claro que havia alguns momentos para ajustarmos. Encontrei nele muita força, muita alegria em fazer as tarefas propostas e disciplina de sobra, para melhorar em tudo o que pudesse fazer, e assim fez.  A pessoa que se move a melhorar ultrapassa barreiras, torna-se imbatível.
Fiquei emocionada pela trajetória da vida dele e pude ver fotos do pai, da esposa, dos filhos, do neto – verdadeira linha do tempo e de uma vida. Hoje, ele é muito jovem, elegante e já avô. Uma oportunidade para essa criança que vai crescer no exemplo de um terreno fértil.
Em minha jornada de professora e de consultora aprendi que ensinamos pouco às pessoas. Entendi que o aprendizado acontece na possibilidade e na necessidade de cada pessoa. Percebi que o bom modelo ajuda a construir uma vida muito melhor, por significar a trilha a seguir.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Coordenadora


Trabalhávamos em uma escola que completava duzentos anos de existência.  Muita experiência e competência na área educacional para jovens. Em comparação com as escolas públicas ou particulares locais, ofereciam remuneração muito acima da média para os professores que lá trabalhavam.
O trabalho do professor é muito mais missão do que profissão. Nele, resumem-se a formação da sociedade e do desenvolvimento de um país. No Brasil, há muito tempo e por questões políticas controversas, esse profissional sofreu o que chamamos de “sucateamento”. Há falta de plano de carreira, de incentivo, de bons salários, de condições para exercer a docência, enfim, sobrevivem os bravos e fortes que sabem o quanto significam para o encaminhamento da nação e, animados pelo retorno que, às vezes, recebem da sociedade, seguem firmes, nessa estrada. Essa é a dura realidade nacional.
Naquela escola, tínhamos muitos recursos, salas bem montadas, laboratórios com computadores, espaço privilegiado, lindo e limpo. Projeto educacional, plano de curso e plano de aula. Muitas foram as reuniões para alinhamento da equipe. Essas, realizadas todas as semanas, demandavam estudo, preparação à parte. A boa remuneração era mais do que justa, diante da exigência para se cumprir. Mas, quando há compensação, o profissional que ama o que faz, realiza com muito empenho todas as tarefas que vão ajudá-lo a crescer e a estar em consonância com a missão, a visão e os valores do grupo. Eu gostava de todas aquelas ações e de pertencer ao quadro de mestres daquela escola. Esse sentimento parecia-me coletivo. Os professores realizavam as tarefas, corrigiam inúmeras provas, elaboravam muitos e excelentes projetos transversalizados e contextualizados. Todo esse esforço era notado no resultado de cada aluno.
A sociedade com acesso àquela instituição pertencia à classe média alta. Os pais e responsáveis eram artistas, atletas, empresários, profissionais liberais, entre outros. Todos com condição para arcar com aquele investimento tão importante, para a vida dos filhos. Alguns acompanhavam de perto; outros enviavam babás e até governantas para saberem dos resultados e resolverem questões disciplinares.
A arquitetura local era extraordinária. O velho e o novo residiam lado a lado. O prédio mais antigo, com colunas arredondadas e corredores com pé-direito altíssimo, estilo Barroco, com portas de madeira altas e escuras. A construção nova era de linhas retas, janelas rasgadas em toda a extensão das salas, muito arejado, limpo, organizado, com rampas de acesso, elevadores, enfim todo o necessário para atender aos sinais dos tempos. Assim a obra arquitetônica, assim a obra educacional.
Nesse cenário, a hierarquia era um tanto rígida. A pirâmide era composta por professores, coordenadores e Diretoria. Isso significava pouca possibilidade para plano de carreira. Mas reconhecíamos o diferencial da remuneração, e, todos, indistintamente, trabalhavam orgulhosos pela obra que ajudavam a construir e pelo valor atribuído. As frentes educativas eram divididas em três grandes áreas. Integrávamos a área de linguagens, o que incluía Língua Portuguesa, Redação, Literatura, Artes, Educação Física. Em cada uma dessas frentes,  havia um professor que conduzia a coordenação. Os demais deviam apresentar a ele os planos de aula, os projetos, as escolhas de materiais didáticos, livros, entre outros. Em alguns momentos, esse profissional assistia às aulas do coordenando e oferecia devolutivas.
Seguramente, e atenta aos sinais do tempo, a coordenadora de nossa área sabia que, algum dia, haveria a possibilidade de um dos coordenadores tornar-se Diretor da escola. Só é possível entender as ações dessa pessoa, a partir desse enfoque. Mas, vamos a ela.
O trabalho do coordenador é estar ao lado da equipe, assistir para o crescimento das pessoas, ajudar a pensar melhores práticas, inovar sempre que possível, tornar o grupo harmônico. Essa é a lógica; mas, diante da vontade de crescer, a qualquer custo, em nome desses bons conceitos, muitas ações irracionais podem ser desencadeadas e assim foi.
Ela queria mostrar à Direção o quanto podia realizar. Para isso, não poupava a equipe. De forma insana, refazíamos nosso plano, inúmeras vezes. Nem sempre com objetivos claramente estabelecidos. As provas eram um capítulo à parte. Precisávamos interligar textos e compor as questões relacionadas a eles. Até então, normalíssimo. Mas, quando a coordenadora queria desestabilizar alguém que – naquela mente insana – afrontasse as ordens dela, ou colocasse em risco o cargo que exercia, rabiscava a prova toda, solicitava para retirar textos, desestruturava as questões e, ao professor, restava refazer, refazer, refazer, até não sobreviver mais ao estresse. A angústia ruminava a mente e a face de cada um que passava por esse expediente. A tão esperada aprovação das provas e dos projetos vinha quase às vésperas da realização delas. A devolutiva ocorria quando a direção já havia cobrado o profissional. Com essa ação, a coordenadora proporcionava formas para sugerir incompetência individual. Todos os outros professores riam de nós, por saber o quanto aquilo era fútil, inútil e repetitivo.
As reuniões. Ah! As reuniões! Momentos difíceis para os professores, sessões individuais de tortura realizadas junto à coordenadora, em torno de uma mesa enorme, na sala dos professores, ou em uma sala vazia. A coordenadora baixava os olhos para um papel, sempre com uma caneta em mãos e, baixinho, educadamente, desmantelava toda e qualquer segurança que o professor pudesse apresentar. Quando questões profissionais não eram suficientes, falava contra o regionalismo da pessoa, atacava questões pessoais. Em outros momentos, falava mal dos colegas da equipe. A técnica era napoleônica: dividir para reinar. Sim, ela não nos queria unidos. Com medo das represálias que surgiam em forma de isolamento ou de exposição sarcástica, as pessoas se recolhiam à solidão. Alguns ousavam alinhamento e, logo, sentiam, na pele, o quanto aquilo não agradava, pois os retaliamentos ocorriam, sempre. Era enfrentar ou desistir. A maioria desistia e preferia seguir só. Dessa forma, salvaguardava a pele, o emprego e não fazia frente à líder.
Uma amiga de trabalho confessou-me que havia sido impedida de convidar-me para a festa de primeiro ano da filha, sob pena de perder a amizade da coordenadora. Desculpou-se, convidou-me mesmo assim, e eu, incrédula, demorei mais de uma semana para digerir tal informação. Não compreendia o que ocorria ali. Era perseguição gratuita; mas com todos, igualmente. Isso era perceptível por mim e por todos os demais pertencentes à equipe ou não. No final do ano, todos os departamentos apostavam quem seria demitido. Em nossa equipe, sempre havia alguém na mira e as observações se voltavam para nós.
Assim, nesse cenário da Arte da Guerra, na necessidade insana de fazer o melhor para garantir o emprego, mantive-me lá por onze longos anos. Muito aprendi com outras pessoas. Dessa coordenadora, aprendi o que não desejava fazer para continuidade da minha vida e das pessoas, em volta de mim.
Mas, o mundo é composto de mudanças. Conforme Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

E, assim, nesse universo de mudanças previstas, por obra da observação da Diretoria, ou por algo que desconheço,  uma coordenadora geral foi admitida para tomar conta de todas as áreas. Foi então que o desespero tomou conta da nossa líder. Ela não sabia o que fazer para desestabilizar aquela profissional, em tudo, diferente dela. Serena, ponderada, calma. Ao analisar o processo de correção de nossas provas, pode observar as injustiças e iniciou um processo de questionamento acerca daquelas ações.
Em me sentia um pouco mais confortável; mas, depois de ter assistido a tanta injustiça, de ter visto tantos bons profissionais perderem o emprego, em função daquela insanidade, percebia que era tempo de partir, buscar novos desafios, enveredar por outros caminhos. A decisão liberta as pessoas. Eu já me sentia livre daquele peso e, dessa forma, livre para falar tudo o que fosse verdade e útil para mim e para quem ficasse no grupo.
Em uma reunião, pude expressar, profissionalmente, minhas contraposições e dificuldades de compreender aquelas ações contra mim e contra o grupo, presente e ainda assustado. Alguns temem enfrentar as situações, por medo de perder o emprego. Isso, em nossa sociedade, é perfeitamente aceitável, vez que a repressão vinda do governo militar promoveu o silêncio. Um grupo, mesmo liberto, vive a síndrome do medo, por algum tempo. É preciso preparar bem o coração, para a liberdade de expressão. Muitas vezes, elementos externos precisam ser acionados, para proporcionar janelas de luz e clarear a mente das pessoas, rumo à liberdade.
Deixei o grupo, em meados de um ano letivo. Decidida, nada faria com que eu permanecesse ali. A força que represa a alma também obriga a encontrar soluções. Eu havia encontrado boas oportunidades. Não podia, não queria permanecer naquele cenário.
A vida é algo que se faz para frente. Isso aprendi com meu pai. Assim, com dignidade de dever cumprido e da honestidade da atuação, sai por aqueles largos portões e, por anos, não soube notícias daquela pessoa que eu não queria bem ou mal; mas, sim, distante. E assim foi.
Tenho contato com bons amigos; mas não tratamos mais do assunto. Ficou esquecido, no passado. Entretanto, a vida teima em dar notícias. Foi por um dia destes em que precisava realizar uma tarefa nas proximidades da escola. Havia tempo de sobra. Eu e meu marido decidimos tomar um café, em frente ao colégio. Lá encontrei colegas amorosos, que depois de tanto tempo, abraçaram-me carinhosamente. Fiquei feliz.
Soube que a Coordenadora de Artes assumiu a Diretoria da escola. A nossa coordenadora solicitou desligamento, há dois anos, por não considerar-se reconhecida.
 A vida é curta e demora-se muito tempo para ser quem se quer ser. Estabelecer objetivos é primordial. Não afastar-se deles é essencial. Escolher entre o bem e o mal é a possibilidade humana na terra. A colheita é obrigatória.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

O filho do Feijão


Para a palavra tino, encontrei diversos significados. Gosto das palavras, elas revelam e escondem muitos caminhos. Consegui saber que é a faculdade de avaliar os seres, os fenômenos, as coisas; instinto, juízo natural, discernimento. No sentido figurado  é a virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e os perigos; prudência, precaução. Pode ser também faculdade de perceber, discernir ou pressentir coisas, independente do raciocínio ou da análise; intuição, sentido, tato; ou facilidade de compreensão, agudeza de espírito; perspicácia, sagacidade, penetração, inteligência. Um que me impressionou foi o fato de também poder ser consciência ou domínio de si ou de algo; conhecimento.
Mas foi apenas a curiosidade que me moveu a buscar tantas interpretações para um só vocábulo. O fato é que essa história vai falar de um homem, e não de uma palavra. Muito embora, seja difícil dizer se o homem inventou a palavra ou é inventado por ela.
Laurentino de Almeida – mais conhecido por Tino - é um homem de estatura baixa, forte igual a um tronco de árvore. Sempre que o encontro, ele está com  calça jeans surrada pela lida. Isso, porque trabalha em multifunções, prestador de serviço que é em elétrica, hidráulica e construção. Dessa forma, os rasgos nos joelhos e o desbotado são constantes e somados a poeira dos locais em que executa as tarefas. É prestativo, basta telefonar que ele chega ao local rapidamente. Gosta de conversar e de contar causos. Toda vez que alguém oferece café ou algo para comer, ele aceita e agradece com as mãos unidas, em forma de oração e diz um simpático e comovente “Deus te abençoe.”
Essas práticas são muito comuns, no interior do Brasil. Apesar da pobreza financeira, as pessoas, educadas para trabalhos rurais recebem orientação familiar e religiosa muito forte. Esses dois elementos contribuem para manter um dos estados mais ricos do país, o Paraná, de onde veio nosso personagem, em busca de oportunidades para ele e para a família.
Em um momento de franca dificuldade, Tino rumou para São Paulo, em busca de emprego e por ouvir comentário de amigos sobre as oportunidades que se encontram nesse estado sempre em movimento. Nas avenidas principais, estações de trem e de ônibus, milhares de pessoas desembarcam para conquistarem o sonho supremo de uma vida melhor. Isso nem sempre significa encontrar riqueza; mas ter uma casa, um fogão, um sofá, uma cama adequada e, claro, poder comprar bens supérfluos como roupas, perfumes, entre outros.
Antes mesmo de chegar à grande cidade, ele parou em um condomínio de luxo para finais de semana. Nesse lugar, belas casas são construídas por empresários, profissionais liberais, artistas. É um espaço menos arriscado do que o centro de São Paulo. Decidiu ficar por ali mesmo. Afinal, o ambiente lembrava mais a essência deles, voltados para a natureza. Aquela, em especial, muito bem tratada, constituía um colírio para os olhos.
Conseguiu emprego para ser caseiro de uma das propriedades. Com casa, luz e água de graça, poderia efetuar alguns trabalhos fora da propriedade e ganhar dinheiro extra. O patrão frequentava a chácara apenas aos finais de semana. Isso dava a ele e à esposa a oportunidade de se esforçarem, para, quem sabe, comprar a casa própria.
Tino é casado com a Márcia, mulher bonita, apesar de se perceber nela traços de uma vida desafiadora e rude. Muitas vezes, a mulher foi servente de pedreiro para ele. Juntos, carregavam pedra, areia, cimento. Pai de dois filhos já moços, o mais novo nasceu com  má formação nos pés e demorou a andar. Por muitos anos, arrastou-se ao chão, enquanto pai e mãe trabalhavam em construções, reformas e cuidados com jardins. A dedicação dele e da esposa contribuíram significativamente para que o rapaz crescesse forte e dono dos próprios passos, apesar da deficiência menos grave que ainda carrega.
Gosto muito da companhia dele. Ultimamente nem o tenho visto, pois não tenho necessitado dos serviços que ele oferece, e a vida tem dessas coisas. Nem sempre conseguimos estar o tempo todo com as pessoas de que gostamos.  Mas, sempre foi interessante conversar com ele. Em uma dessas conversas, perguntei:
- Ô Tino, quando você faz aniversário?
- Não sei ao certo, não senhora – respondeu ele.
- Como não sabe? Você faz tantas coisas, instala luz, postes e não sabe a data do seu aniversário? – Brinquei - Aceita um café?
Tino aceitou um café e parou um pouco, para me explicar aquela questão. Calmo, entre um gole e uma tragada no cigarro que ele fumava, contou-me que a família dele era do sítio, local distante do primeiro povoado. Eles não contavam com carro. Transporte era lombo de burro. Cavalo de raça não aguentava aquele trabalho todo.
O pai e a mãe, raramente, iam à cidade. E assim, alimentados pela terra e pelas criações das quais tomavam conta, levavam a vida. Nesse ritmo calmo e de pouco convívio social, nasciam os filhos, ali mesmo, com apoio de parteiras locais. Quantas crianças e mães morriam, na hora do parto, por falta de assistência adequada. Mas, na família do Tino não. Todos vingaram fortes e, desde pequenos, ajudavam pai e mãe nos serviços da roça, de acordo com a idade e com a possibilidade de realizar as tarefas.
E foi assim que muitos irmãos nasceram, no sítio, com auxílio de parteira. A mãe, no dia seguinte, já estava na lida, em casa. As vizinhas preparavam a canja de galinha, para a mãe. Algumas iam, na primeira semana, ajudar nos serviços de casa. Naquela época, água era tirada do poço; o tanque era uma tina – quando havia – em grande parte, as mulheres lavavam a roupa na mina, o banheiro era uma casinha externa e o trabalho doméstico era duro.
Assim, os dias se passavam, mãe ficava grávida novamente, outro filho nascia. Quando o clima colaborava, a colheita era um pouco melhor e pai podia juntar um dinheirinho para ir à cidade, comprar alguns suprimentos e, quem sabe, levar os filhos para registrar, no cartório.
Aquele ano tinha sido muito bom. O feijão rendera muito. O pai do Tino conseguira juntar um dinheiro. Hoje, mulher, vamos levar os piás para a cidade, precisamos registrar os meninos. Sairam antes de o galo cantar, estava escuro. Foram de carroça, para acomodar melhor as crianças. No sacolejo da estrada de terra e esburacada, os pais seguiam orgulhosos com o melhor produto da vida - aquelas crianças todas, empoeiradas pela terra vermelha que, misturada ao suor dos pequenos, transformava em vermelha as faces daqueles anjos.
Chegaram na Cidade, apearam todos e foram primeiro ao cartório. Eram três crianças para registrar. Quando chegou a vez do Laurentino, o cartorário perguntou:
- Nome da criança?
- Laurentino de Almeida – respondeu o pai.
- Data de nascimento? Continuou o cartorário.
Foi nesse momento que o pai do Tino precisou pensar um pouco mais. Fez algumas contas com ajuda dos dedos. Franziu a testa e voltou-se para a mulher.
- Ôh mulher, nasceu quando esse aqui?
Mãe responde:
- Ói, que me recordo, ele nasceu na colheita do feijão.
- Isso foi em agosto, não foi? Conferiu o pai.
- É, deve ter sido. Completou a mãe.
O menino era pequeno, estava por ali e tudo ouviu.
- Então, Sr. escrivão, coloque 20 de agosto. Disse o pai.
O escrivão nem relutou. Aquilo era prática por ali. E foi assim que Laurentino de Almeida recebeu por data de aniversário, do dia da colheita do feijão.
E assim, o feijão, esse alimento tão importante à mesa, marcou a vida de um brasileiro forte, que se  multiplica, no trabalho, no cuidado da família, na orientação dos filhos. Assim também, Ocorre ao grão de mostarda, que um homem tomou e plantou na sua horta, e que cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu pousaram nos seus ramos. (Lucas 13:18-19)

A letra e o espaço



Éramos pré-adolescentes. Estudávamos em uma escola pública muito simples, de bairro pobre, da cidade de São Paulo. A escola apresentava um prédio, de cor amarela, com algumas faixas pintadas a óleo, na cor azul marinho; outros galpões de madeira, serviam de sala e aula para os menores. Nosso sonho era crescer rapidamente e poder subir as escadas daquele prédio de alvenaria da escola.
No local, havia uma pequena quadra de esportes, descoberta. Nela, corríamos, jogávamos queimada e handball. Aqueles momentos olímpicos, se assim podemos dizer; mas era assim que os sentíamos, despertavam em nós competições muito sérias. Algumas delas terminavam em briga, na rua da escola e longe dos olhares da Dona Francisca e do Diretor Geraldo.
A Dona Francisca era um episódio à parte. Mulher muito magra, alta – pelo menos, em nossa medida, da época – brava. Essa senhora ocupava-se de desmanchar as barras das saias das alunas, na entrada do colégio. O Uniforme era composto por sapato preto, com meias três quartos brancas, saia cinza, cinto vermelho e camisa branca, com distintivo da escola aplicado a um bolso. As meninas tinham por hábito encurtar a saia que deveria estar a quatro dedos acima do joelho. O desejo das alunas é que as saias estivessem a, pelo menos, quinze dedos. Mas, a supervisora cuidava para que a regra fosse cumprida. Na entrada, as garotas em fila; e Dona Francisca desfazia as barras. Quem passasse por esse episódio, permaneceria o período todo com a saia descomposta. Isso era muito vergonhoso para a década de 70.
Época em que o Brasil vivia sob o regime militar. Tudo lembrava a disciplina dos quartéis. Da entrada do colégio às proibições, tudo era muito severo. Fazíamos filas para entrar na sala de aula. Antes, hasteávamos a bandeira, ao som o Hino Nacional.  Havia postura obrigatória, silêncio total e respeito. Professores eram sumidades, tarefas eram vitais e os pais compareciam às reuniões de mestres. Meu pai sempre estava presente por lá. Isso imprimia a mim e a minha irmã mais velha obrigatoriedade de apresentar bons resultados.
Independente da rigidez do sistema, sempre gostei muito de aprender e das aulas de Português. Saudades da Dona Ornélia, professora doce e paciente que nos ensinava as letras, na quinta-série do Ensino Fundamental. Quanta paciência e quanta doçura. Havia professores engraçados, por exemplo, a professora de Orfião – canto e música. Aprendíamos a cantar “As Pastorinhas” e precisávamos soltar a voz. Quanto aprendizado. Nas aulas de Educação Moral e Cívica, aprendíamos sobre os poderes governamentais e os deveres do cidadão; direitos eram pouco e nada comentados.
Um episódio marcante vivi na aula de francês, como Professor  Peixoto. Um senhor muito culto e severo, costumava viajar para a frança, regularmente, e nos trazia conceitos artísticos e culturais. Além de contribuir e bastante para nosso crescimento,  ele era bravo e não permitia aos alunos que mascassem chicletes em suas aulas. Se isso ocorresse, éramos postos para fora da aula, sumariamente. O medo que eu vivia desse professor era tanto que, um dia, ao vê-lo entrar na sala de aula, passei a língua pelos dentes, e ele imaginou           que eu estivesse em franco delito. Não adiantou justificativa. Naquele dia, fui colocada para fora da sala. Um verdadeiro desastre para quem queria muito e sempre ter bons resultados. Fiquei no corredor, aos prantos. Naquela época, aluno não ficava fora da classe, sem ser percebido. Imediatamente, Dona Francisca conduziu-me à sala do Diretor Geral. Lá, chorei rios de lágrimas e foram tantas, que, ao invés do castigo e da advertência, fui servida do chá e, pela primeira vez, vi o Diretor empenhado em me acalmar. Eu era aluna dedicada. Talvez, por esse motivo, tenha recebido tratamento diferenciado. O normal era levar a advertência para casa e voltar apenas em companhia dos pais.
Gostávamos de participar de todas as atividades. A vizinhança era tranquila, isso propiciava aos jovens a permissão dos pais para ir e vir, em pseudo liberdade. Nossa escola participava do desfile em comemoração ao sete de setembro; mas, por ser pobre demais, não tínhamos a tão famosa fanfarra. A banda musical das escolas devia ter instrumentos musicais: tambores, pistão, entre outros. Certamente, para quem estudava em galpão de madeira, ter também esses apetrechos era impossível. O bom de ser jovem é não se importar com esses fatores. Decidimos, então, que desfilaríamos ao som da fanfarra da escola vizinha e, claro, concorrente.
Se alguém notou a falta dessa ala, em nosso grupo, nós nem nos abalamos. Desfilamos assim mesmo, com empolgação e com destaque. Pertencíamos todos à classe média baixa, mas os pais eram caprichosos e atentos, contribuíam com a compra de  objetos acessíveis, para embelezar a nossa ação. Sem bandeira, fanfarra e outros elementos, decidimos formar uma comissão de frente.
Claro que a equipe a formar essa comissão deveria ser composta pelas meninas, de alturas semelhantes e bonitas.  O nome da escola era “Escola Estadual de Primeiro Grau República do Chile”. Para destacarmos o nome da nossa querida escola, decidimos – as meninas – vestir um uniforme composto por conga vermelho, meia branca três quartos, saia de cetim vermelha e evasê, camiseta básica branca, com gola careca e mangas curtas. Na camiseta, decidimos colar as letras que compunham  nome da escola. Algumas meninas não carregariam letras, para formar o espaço necessário entre os componentes do nome. Assim decidimos e assim fizemos. Foram horas de dedicação para desenhar, recortar e fixar as letras, nas camisetas brancas, sem sujá-las ou sem deformá-las, vez que, caprichosamente, foram desenhadas, sobre papel alumínio vermelho e recortadas.
Tudo decidido. Tínhamos uma roupa adequada e organizada. A beleza das alunas contribuiria para evitar que notassem a ausência da fanfarra. Esse tipo de atividade formava uma união imbatível, entre os participantes. Uma espécie de orgulho, além das letras que compunham o nome da escola,  invadia o peito dos alunos. A competição sempre estava presente. Todos queriam algum destaque.
O desfile foi marcado para um sábado. Era uma agitação no bairro. Havia, na avenida principal, um comércio bem ativo e, aos sábados, contávamos com uma feira livre que trazia muitas mais pessoas de todo entorno, para as compras. Famosa feira! Quantos amigos nós encontrávamos por lá. Alguns arrastavam os carrinhos para as mães, outros iam apenas para paquerar, outros eram filhos de feirantes e trabalhavam nas barracas. A feira somada ao desfile causou um congestionamento incrível no local. Era tudo o que queríamos, depois de tanto empenho para aparecermos bem, diante daquela sociedade. Nossa escola seria muito bem representada. Em momentos assim, o aprendiz se transforma em grande realizador. Tais ações contribuem para que ele entenda a verdadeira ponte entre as práticas escolares e o ambiente profissional em que, um dia, vai atuar.
Meu pai era muito presente, orgulhoso das filhas e dos resultados que construíamos, estava lá, à beira da avenida, para nos ver desfilar. O percurso era curto. Acredito que menos de um quilômetro. Entretanto, cada passo medido significava um feito heroico semelhante ao de D. Pedro I, no ato da Proclamação da Independência. Na falta de cavalo de raça, trotávamos em ritmo militar sobre nossas congas cabeção.
Naquele dia, acordamos cedo, vestimos o uniforme preparado para o desfile e seguimos para o encontro marcado, na quadra da escola. Muita disciplina. Estávamos ansiosos para colocar nossa escola na avenida. Tudo era importante para que nós estivéssemos presentes e marcássemos nossa ação. Quanta força a soma individual empresta ao coletivo!
Dona Francisca chamou o diretor e disse que podíamos seguir para a Avenida. Todos alinhados, caminhávamos em direção à apoteose. A escola que tinha fanfarra seguiu à frente, e nós, imediatamente atrás, para aproveitamos a cadência daquelas batidas.
Atravessamos o espaço destinado à travessia e sentíamos um valor incrível daqueles olhares admirados para nosso feito. Sim, o poder da realização pode promover voos incríveis, a partir de cada passo. Seguíamos firmes. Para não desconfigurarmos o nome da escola, íamos com os braços entrelaçados. Era muito importante transmitir aquela mensagem e deixar claro que o batuque era de outra escola; mas nós marcávamos o início da mais importante de todas, a nossa. O valor sugerido por pertencer a um grupo é relativo ao orgulho que cada componente sente por fazer parte dele. Isso, nós tínhamos de sobra.
Foi um grande ato. Ao final, no espaço reservado para a concentração das escolas, meu pai acenava, com um ramalhete de rosas vermelhas em uma das mãos e, na outra, uma caixa com um relógio. Esqueci-me de contar que faço aniversário em setembro e o desfile  ocorreu em um sábado, um dia após minha data de nascimento. Outro detalhe importante é que, por ser filha de um imigrante italiano movido pela emoção, aprendi cedo a ser valorizada pelo representante masculino. Recebi, em meio aos presentes, um abraço forte e amoroso de meu pai. Isso sempre foi muito marcante em minha vida. Vou dedicar capítulo à parte, para mais histórias em que meus pais protagonizam grandes feitos.
Para mim, aquele ato foi lindo e, ao mesmo tempo, previsto em minha família. Apesar de não sermos ricos, nosso lar era embalado por músicas, viagens, boas comidas à mesa, muita leitura e diálogo. Meu pai era muito dedicado. A vida dele era resumida ao trabalho e à família. Tudo, fazíamos juntos.
Na época, máquina fotográfica era cara e revelação de foto muito mais. Por esse motivo, não tive foto, na época. Passados trinta anos, ainda mantenho contato com quatro das participantes do desfile. Uma delas,  a Elsie Palmiro, mora no Canadá, há 22 anos. A família dela tinha máquina de fotografia e enviou uma cópia para mim, por e-mail. Maravilhosa invenção tecnológica, para transmissão de informações. Outra, hoje, empresária de sucesso, veio almoçar em minha casa e confessou:
- Odiei você por duas vezes, no dia do desfile.
Eu quis saber por quê. Ela explicou:
- Primeiro você era a letra; e eu era o espaço. Depois, seu pai entregou aqueles presentes a você...
Há uma letra e um espaço, na vida de cada um de nós. Hoje, somos produto do que nossos antepassados puderam fazer por nós. Amanhã, seremos frutos das nossas próprias decisões e vamos interferir – seriamente – na vida de nossos descendentes.

Narrativa cearense


Antonio Rodrigues da Silva, nascido e casado em Nova Russias, Ceará. Era um homem forte, do interior, forjado no calor da lavoura, musculoso. Cresceu assim, humilde, trabalhador, honesto e firme.
E, por conhecer esse caminho, casou-se com Marluce. Moça simples, que conhecera na colheita do algodão. Juntos, tiveram três filhos: duas meninas, um menino. Foi por aquela ocasião que Antonio pode ver a vida se multiplicar e, junto a ela, a possibilidade de a pobreza daquela situação se perpetuar.
Há momentos, na vida, em que uma espécie de raio ilumina a mente do homem. E foi daquela vez que Antonio viu, claramente,  o futuro que esperava por ele e pelos filhos, naquela cidade, naquela região.
Naquele dia dormiu com a dúvida e acordou com a certeza. Sim, aceitaria o convite do primo Josuel. Esse havia seguido para Brasília, em busca de oportunidade de trabalho. Foi pela época da inauguração da Capital. Em verdade, Antonio não sabia muito bem o que significava sair dali e buscar outro caminho. A vida só havia apresentado a ele pequenas trilhas. Mas, afinal, estava decidido,  para quem não tinha nada, qualquer coisa a mais poderia ser bem melhor.
Tomou coragem. Escreveu uma carta. Pediu explicações. Aquele mês se arrastava, à espera de resposta. Sol a sol, Antonio colhia algodão, no sítio do tio. Recebia Cr$4,00 por dia de trabalho. Ao ter o valor, em mãos, pensava nas cinco bocas que precisava alimentar, com menos de CR$1,00 por dia. Sofria por saber que a necessidade iria se arrastar por gerações. Definitivamente, precisava partir.
A angústia cessou, quando o agente do correio local cruzou a praça, montado na velha bicicleta e vestido com aquele uniforme amarelo desbotado, com uma carta em mãos. Nunca antes, aquela roupa do agente brilhara tanto com o sol. O coração disparou em uma batedeira enlouquecida. Antonio sabia. Aquela era a hora. Coragem homem.
O primo escrevia sobre o trabalho,o ganho e animava-o a partir. Antonio Chamou a mulher e informou-a da decisão. Ia só. Precisava ver tudo, antes de arriscar-se com a família. A esposa chorou. Parecia um adeus. Ele lançou um último olhar para os filhos, com a promessa de voltar. Chorem não, bichinhos.Eu volto. Prometo.

Contratou passagem com o pau-de-arara – caminhão que levava os patrícios para tentarem a vida, em  outras paragens. Nem feliz, nem triste, antes, um pouco assustado. Jamais havia se imaginado em tal situação. Assim foi. Só. A família ficou para trás. Acenaram adeus  até o caminho sumir, na estrada poeirenta, até não verem mais o pai. Naquele instante, Antonio se aproveitou do efeito da poeira e pode limpar os olhos. Homem não chora. Fique firme, vá.
E, assim, seguiram-se quinze dias, na carroceria daquele caminhão. Pouca comida. Quase sem água e sem paragens para se abastecer. Com o passar dos dias, a barba tomava conta daquele rosto já magro e, agora, com ar bem mais cansado.
Era ano de 1977. Há dez anos, Brasília havia sido inaugurada e muita mão de obra era necessária para erguer todos os prédios que acomodariam os governantes do Brasil. Foi nesse cenário que Antonio chegou por lá. Emprego certo, em construções. Ajudante de pedreiro, meia colher, CR$50,00, por dia. Era uma fortuna, nunca antes imaginada. Cansado; mas animado pelo ganho diário, viu as forças redobrarem e pegou firme na pá.
Revirar a terra era mais fácil do que revolver pedra, areia, cimento e água. Enquanto no Ceará plantavam algodão – planta baixa e de flor suave – no novo estado, plantavam prédios altos, duros, reforçados por barras de ferro e vigas de concreto. Aquilo não caia não senhor. Duro como pedra, alto igual a espigão. De vez enquando, Antonio comparava a altura dos homens à altura dos prédios. Como pode um homem tão pequeno construir prédios tão altos. Êta mundo besta, meu Deus.
Pensar era de graça. Comer o que serviam, durante o serviço na obra, e guardar o dinheiro, para trazer a família. Sim, ele os traria. Jamais deixaria aqueles olhos inocentes para trás. Sentia-se só. Queria amar a esposa e dormir, de novo, naquele colo macio, para aliviar a cama dura. Era do que precisava e ia fazer por onde. Trabalhou duro, juntou o dinheiro, conseguiu somar o valor das passagens.
Avisou a família. Que trouxessem tudo, roupas, o que desse. Voltar, talvez, fosse bem difícil.
A esposa, feliz, recebeu o aviso. Juntou os meninos “Bora prá Brasília. Nossa vida vai se outra. Mais feijão, na mesa. O pai do cêis mandou seguir.” Decidida, nem pensou, juntou os filhos, deu um banho neles, arranjou as trouxas de roupa – tudo o que tinham – e partiu, rumo ao marido. Sentia saudade, queria vê-lo. Estava feliz. Ele lembrou-se dela e dos filhos. Quantos não voltavam!
A viagem foi longa. As crianças queriam saber – demora, mainha?  Ela não sabia dizer, era a primeira vez, pedia paciência. Por fim, nem respondia. Sofria a falta de conforto, compensada pelas ideias de uma nova vida.
Chegaram, enfim. O marido esperava ansioso. Enquanto viajavam, ele juntava mais dinheiro, para poder arranjar um quarto; mas não fora possível. Dormiram dois dias no vão da ponte mesmo. O ar seco e quente contribuiu para acolhê-los. Estavam bem e felizes, juntos.
Foi no terceiro dia que conseguiu um cômodo para a família, com banheiro coletivo. Era um cortiço; mas para começar, estava bem. Alojou ali a família e “simbora, ganhar dinheiro”.

Os amigos da obra frequentavam o Morro o urubu. Lugar famoso pelas quengas que viviam lá. Ele nunca havia ido; mas a curiosidade o arrastou até o local. Ele forte, bem apessoado, já alimentado pela marmita da obra. Agora, estava na força do homem, no poder. A família por ali. Já podia dar-se ao direito de uma farra. Ninguém ia saber mesmo.
Envolvido pelo pensamento, não imaginava o momento decisivo que viveria ali, naquele lugar.
Aproximou-se um soldado, olhou para Antonio e  perguntou:
- Ô, paisano, tu és capaz de matar um homem
Ele, sempre pronto, respondeu:
- se for para salvar minha vida. Oxê, sim.
Sem sequer imaginar o que o esperava, o milico respondeu:
- Então, pegue esse porrete e seja polícia. Precisamos de homens fortes como tu, lá, no quartel.
E assim, Antonio se tornou polícia, respeitado. Salário bom, pode educar os filhos e comprar uma casinha. O plano dele era ver cada filho com uma casa própria. E isso, ele viu.
É, a vida tem dessas surpresas.
Encontrei o filho dele, motorista de um táxi, a caminho do aeroporto Juscelino Kubitscheck, em Brasília. Orgulhoso, contou-me a história da chegada e das bravuras do pai. Confessou que a mãe não sabia sobre o caso do Morro dos urubus. Não carecia.

                                                                                                           Irma Ugarelli